sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

MARX E A CRÍTICA DO IDEALISMO - Marcus Gomes

 


MARX E A CRÍTICA DO IDEALISMO

 

Marcus Gomes*

GOMES, M. Marx e a Crítica do Idealismo. Revista Espaço Livre[S. l.], v. 12, n. 24, p. 09–18, 2022. Disponível em: http://redelp.net/index.php/rel/article/view/292. Acesso em: 27 jan. 2023. 

A questão da relação entre materialismo e idealismo no marxismo é vista geralmente de forma confusa. Essa confusão ocorre através da compreensão limitada do que significaria “materialismo” para o pensamento de Marx e sua interpretação através de sua substituição pelo materialismo mecanicista do pensamento burguês. Isso gera uma concepção segundo a qual as ideias seriam meros “epifenômenos”, ou seja, um fenômeno secundário ou acidental sem importância explicativa ou que não tem capacidade de gerar efeitos próprios[1], e isso tem forte implicação política. Assim, torna-se necessário entender a crítica que Marx fez ao idealismo para compreender o real sentido do seu materialismo.

A crítica fundamental de Marx ao idealismo é muito mais complexa do que as interpretações deformadoras apresentam. No fundo, Marx refuta duas manifestações distintas de idealismo. A primeira é a concepção idealista segundo a qual as ideias constituem a realidade. É nesse contexto que Marx realiza a crítica do idealismo hegeliano:

Por sua fundamentação, meu método dialético não só difere do hegeliano, mas é também a sua antítese direta. Para Hegel, o processo de pensamento, que ele, sob o nome de ideia, transforma num sujeito autônomo, é o demiurgo do real, real que constitui apenas a sua manifestação externa. Para mim, pelo contrário, o ideal não é nada mais que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem (MARX, 1988, p. 140).

Aqui temos a afirmação de Marx a respeito do antagonismo (“antítese direta”) entre seu método e o de Hegel. Essa antítese se fundamenta no processo de compreensão da relação entre “ideia” (consciência, em termos marxistas) e realidade. Para Hegel, a ideia é um “sujeito autônomo” e, por conseguinte, “demiurgo (criador) do real”, sendo este mera manifestação externa. A concepção aqui é a de que as ideias constituem a realidade. Napoleão, para Hegel, por exemplo, só teve importância histórica por ter encarnado uma ideia. Para Marx, ao contrário, o “ideal”, ou seja, a consciência, não é nada mais que uma tradução e transposição do material para a mente humana. Sem dúvida, alguns pseudomarxistas pensam que “cabeça” significa “cérebro”, no sentido físico do termo, e “transposição do material” é visto mecanicamente, o que significa transformar Marx num materialista vulgar. Dizer que o material é transposto para a mente é o mesmo que afirmar que o real (que, nesse contexto, significa o mesmo que material) é transposto para a mente no sentido de que ela “reconstitui” ele idealmente, realizando sua “tradução”, o que significa que não é uma transposição mecânica.

Assim, a mente traduz o material (real) em ideias. A filosofia hegeliana, por exemplo, trata do real, traduz ele numa determinada linguagem e o faz a partir de determinada interpretação, o que significa sua transposição e tradução. Essa transposição e tradução podem ser ideológicas, como no caso hegeliano. Isso significa que é uma inversão da realidade, em termos marxistas (MARX e ENGELS, 1982). O real é traduzido e transposto na filosofia hegeliana, mas como é “tradução”, ela pode inverter a realidade ao invés de expressá-la. É por isso que a ideologia é possível e também é por isso que se trata de uma tradução, que pode ser mais ou menos fiel, mais ou menos deformante. Uma pessoa não traduz um idioma que desconhece, pode apenas “imaginar” o que ouviu ou leu e pode até dizer que compreendeu, sem ter de fato compreendido. Outra pessoa, com domínio rudimentar de outro idioma, pode fazer más traduções. E quanto mais complexo o que é traduzido, mais fácil é a deformação, ou a traição, para lembrar o ditado popular.

Marx também realiza a crítica à outra forma de idealismo. Trata-se da concepção idealista segundo a qual as ideias ou a consciência determinam a realidade. No caso anterior, a ideia constitui a realidade. Nesse caso, as ideias determinam a realidade, gerando uma concepção monocausal que atribui à consciência a determinação dos acontecimentos sociais e da vida em geral. Essa concepção é refutada por Marx numa de suas frases mais famosas: “O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência” (MARX, 1983, p. 25). Aqui Marx defende a ideia de que é o ser social que determina a consciência e não vice-versa.

A consciência de um indivíduo só pode ser emanação de seu processo histórico de vida. A consciência não é nada mais que o “ser consciente” (MARX e ENGELS, 1982) e só se existisse um “espírito à parte” para não ser isso. O ser consciente é um indivíduo real, que tem uma história de vida, que travou determinadas relações sociais, que foi socializado numa determinada época, sociedade, classe social, que foi constituindo valores gerados socialmente, sentimentos incentivados por determinados setores da sociedade em um contexto social mais amplo, bem como ideias de que teve acesso de determinada forma, lugar, etc.

Essa crítica de Marx pode ser confundida com o materialismo vulgar e, efetivamente, muitos pseudomarxistas caíram nessa armadilha. Porém, há uma má compreensão do que foi afirmado (ou seja, a tese de Marx é transposta e traduzida de forma equivocada pelos pseudomarxistas e supostos “críticos” deste autor). A crítica de Marx é clara: a consciência é um produto social e histórico e não é a determinação da realidade. Aqui se tem uma análise da relação concreta, real, entre ser social e consciência, entre indivíduos reais e suas formas de consciência. A consciência não é algo anistórico, fora das relações sociais, etc. É o mesmo que dizer que o Estado é um produto social e histórico, mas, uma vez existindo, atua sobre o modo de produção, sua base real, e todo o resto, regularizando as relações sociais.

Logo, as ideias, as formas de consciência, são produtos sociais e históricos. Isso não quer dizer que elas não sejam “irreais”. Alguns intelectuais com pouca capacidade interpretativa de textos, deduzem, de afirmações de Marx sobre “representações reais” e “ilusórias” ou sobre ideologia como inversão da realidade, que as ideias ilusórias seriam inexistentes, o que é uma interpretação absurda. A questão é a de que as representações “reais” (o mais adequado seria dizer “verdadeiras”) e as representações “ilusórias” existem, e o “real” e o “ilusório” é o seu conteúdo (VIANA, 2015a). Se eu acredito em Papai Noel, eu tenho essa representação que existe de fato, mas o seu conteúdo é ilusório. Da mesma forma, se eu acredito que o sol gira em torno da terra. Isso vale para representações verdadeiras. Se eu penso que a terra gira em torno do sol, tal representação existe, e seu conteúdo é verdadeiro.

As formas de consciência são constituídas social e historicamente, mas, uma vez existindo, atuam sobre a realidade e são uma de suas determinações. Essa é a concepção marxista, e só numa concepção mística seria diferente. Basta uma breve olhada na história da humanidade para ver que milhares de seres humanos mataram e morreram por causa de ideias, bem como outros que mudaram de ideias sempre que foi de seu interesse, o que não anula a afirmação anterior.

Porém, aqui reside outra crítica de Marx a algo que é reproduzido pelos culturalistas contemporâneos. As formas de consciência (ou a cultura, representações, ideias, etc.) não determinam a realidade, pois esta afirmação tem um caráter monocausal, como se o motor da história fossem as ideias. Isso é facilmente refutado se lembrarmos de que as formas de consciência são constituídas social e historicamente e que a cultura é muito mais produto do que produtor da história. Existem bases reais para determinadas ideias surgirem, se reproduzirem, ganharem força. E isso está ligado a interesses (individuais e outros, mas especialmente de classe) e outros processos (sentimentos, valores, etc.). As ideias religiosas que foram hegemônicas na sociedade feudal, emergiram a partir das relações sociais reais e interesses de classe que surgem a partir delas. Elas, uma vez existindo, tinham a função de reproduzir e regularizar tais relações, o que significa que se tornam ideias dominantes e que serviram para manter a dominação.

Assim, temos a crítica de Marx ao idealismo absoluto hegeliano, bem como ao idealismo de historiadores e outros culturalistas, que pensam a história como sendo a história das ideias (a concepção materialista da história se opõe à concepção idealista e o tratamento de Max Weber sobre o significado do protestantismo na transição para o capitalismo é um exemplo desse tipo de procedimento). A crítica do idealismo absoluto apresenta uma recusa da concepção segundo a qual as ideias constituem a realidade e a crítica ao idealismo mais brando aponta para a recusa de que as ideias determinam a realidade, numa concepção monocausal.

A concepção oposta apresentada por Marx é o materialismo histórico. O materialismo aqui é muito mais um realismo do que uma concepção de “matéria”, seja a matéria física ou qualquer outra. O real é o elemento fundamental, inclusive para explicar a consciência. Uma sociedade produz milhares de ideias ilusórias sobre si mesma e só é possível escapar de sua autoilusão através da análise da realidade ao invés de se limitar às ideias constituídas por elas. O “material” do materialismo histórico, é o real, e esse é o social (realidade social) e o natural (realidade natural).

As ideias, contudo, não são todas equivalentes. Elas podem ser diferenciadas por seu conteúdo (verdadeiro ou falso) ou podem ser diferenciadas por sua força, ou seja, sua eficácia social[2]. As ideias dominantes são as ideias da classe dominante (MARX e ENGELS, 1988) e isso é explicado socialmente: a classe que possui o “poder material” (meios de produção nas sociedades de classes e, mais especificamente, capital, na sociedade capitalista) também possui os “meios de produção intelectual”, logo, o “poder espiritual”.

A recusa da constituição da realidade pela consciência é apresentada por Marx em diversas passagens e é por isso que ele afirma que uma coisa é gênese do concreto (categoria que explicita o que conceitualmente é apresentado como o real) na realidade e outra coisa é sua gênese no pensamento. Na realidade, o concreto é determinado e é a “síntese de múltiplas determinações”. Ele existe independente da consciência (e isso mostra a recusa do idealismo absoluto) e pode ser reconstituído (idealmente) na consciência.

O outro momento é a explicação do real. Marx rompe com os determinismos, produtos das ciências particulares, e mostra que o concreto é o resultado de diversas determinações e as ideias fazem parte desta determinação[3]. O que não se pode pensar é que elas são a única determinação da realidade. Quando Marx analisa as lutas de classes na França (MARX, 1986; MARX, 1989) ele aponta para o significado das ideias nesse processo, mostrando como as ilusões são obstáculos e a consciência verdadeira é importante para o proletariado.

A ideia de práxis é outro elemento fundamental do pensamento de Marx e da ideia de transformação social, bem como para compreender que o materialismo histórico, ao contrário de outras formas de materialismo, não é contemplativo. Marx refuta a posição contemplativa e afirma que o idealismo desenvolveu o lado ativo, mas abstratamente. Assim, o materialismo contemplativo deixa de lado a práxis, a atividade humana sensível, e o idealismo reconhece a atividade, mas sob forma abstrata, não compreendendo a atividade real, concreta. Em Feuerbach, a atividade humana não aparece como atividade concreta, real. Por isso não entende a atividade revolucionária (MARX, 1982).

A atividade revolucionária é a transformadora, não meramente reprodutora. Podemos compreender melhor quando Marx aborda a questão do trabalho em O Capital, como atividade humanizadora, que humaniza o mundo, transformando a realidade social e natural através de uma finalidade, colocando-a antes de sua realização. A práxis é, portanto, teleológica, o que pressupõe a consciência. Não é possível colocar uma finalidade em uma atividade sem ser consciente e fazer isso conscientemente. O ser humano planeja uma atividade antes de realizá-la, ao contrário de uma aranha ou uma abelha, que fazem isso por sua programação orgânica.

A ideia de comunismo, em Marx, remete justamente para isso. O comunismo é a “livre associação dos produtores”, a autogestão, e nessa sociedade, termina a pré-história humana, e começa sua história. A história humana significa a história feita conscientemente pelos seres humanos, que se tornam senhores do seu destino ao invés de manifestações de uma engrenagem (capital, servidão, etc.) que os dominam e de acordo com os interesses da classe dominante. A ideia de comunismo em Marx é justamente quando a práxis individual se torna coletiva, generalizada, o que pode ser denominado comunismo ou autogestão, ou seja, quando não apenas determinados indivíduos exercem atividades teleológicas conscientes, mas quando o conjunto da humanidade faz isso[4].

Ora, se a humanidade decide conscientemente sua finalidade, então temos o “reino da liberdade” e isso poderia parecer contradizer o materialismo histórico. Essa curiosa contradição parece nascer da contradição da crítica ao idealismo de Marx em contraposição ao reino da liberdade, na qual a humanidade decidiria conscientemente seu destino, o que significaria o predomínio das ideias. E isso até significaria que o materialismo histórico é equivocado para analisar a sociedade comunista ou autogerida.

Esse, no entanto, é um falso problema, derivado de uma concepção fundada no materialismo vulgar. Quando se trata, no materialismo histórico, da relação entre ideias e realidade, ela ocorre nesse contexto. O real antecede e determina as ideias, no sentido histórico. Os seres humanos, a partir de um determinado modo de produção, determinadas relações sociais, determinadas formas sociais (Estado, direito, formas organizacionais, formas de socialização, etc.), determinada cultura anteriormente existente, constituem interesses e produzem as suas ideias. Elas são parte da realidade e também são reais, no sentido de que existem e são ativas, mobilizadoras. As ideias são uma das determinações da realidade social. Os valores, os sentimentos, etc., também são constituídos socialmente e também são mobilizadores. E se não fossem os sentimentos simpáticos, os valores autênticos, não existiriam revolucionários[5]. Da mesma forma, as ideias revolucionárias se unificam com tais sentimentos e valores e são mobilizadores importantes para o processo revolucionário. As ideias contrárias também, só que agem no sentido contrário.

As ideias não podem surgir delas mesmas[6], mas uma vez existindo, são ativas. As ideias, ou seja, as formas de consciência, numa sociedade autogerida, também são produtos sociais e históricos. Elas brotam de uma sociedade na qual houve a libertação humana, a escassez material foi superada, as classes sociais e seus interesses antagônicos também, uma nova sociabilidade, fundada na liberdade, solidariedade, etc., é instituída. Essa é a nova base real das ideias. As ideias passam a determinar a realidade, mas tão-somente por corresponder a ela, expressar relações sociais concretas, tal como a autogestão do processo de produção e do conjunto das relações sociais.

Nesse contexto, ocorrerá um avanço extraordinário da consciência e isso é explicado pelo fato de que os obstáculos (interesses da burguesia, força do dinheiro, bases valorativas, competição social, burocratização, etc.,) foram superados. As ideias passam a se adequar à realidade. E a história humana sempre foi produzida pelos seres humanos, mas através de uma luta de classes, nas quais os interesses da classe dominante eram determinantes do processo de reprodução, de acordo com as condições e necessidades de um determinado modo de produção. Uma vez destruída a sociedade de classes, os interesses individuais deixam de se contrapor ao interesse universal da humanidade e assim se constituem novas relações de produção e relações sociais e, no interior delas, as ideias passam a ser fundamentais, mas já não são as formas de consciência antigas e sim novas, correspondentes às novas relações sociais. As novas necessidades, os novos interesses, as novas formas de consciência, as novas ideias, estão em coerência com o conjunto das relações sociais, pois estas exigem a atividade teleológica consciente de toda a população.

O fundamental é compreender que numa futura sociedade autogerida, o que Marx denominou “comunismo” (termo que foi deformado pelos pseudomarxistas, passando a denominar partidos, países, etc. que nada tem a ver com o significado original deste termo e por isso preferimos “autogestão”, termo que não está livre das deformações, mas explicita em seu conteúdo algo mais próximo da sociedade futura) é o reino da liberdade. A liberdade, que nesse caso será a síntese da liberdade individual e coletiva (VIANA, 2015b), pressupõe consciência e só é livre quem é consciente e decide conscientemente. O reino da liberdade é, portanto, o reino da consciência de seres humanos livres e estes assim o são pelo motivo de que as relações sociais que eles instituíram apontam para isso.

Na nossa sociedade, quando em um pequeno grupo há a decisão coletiva, ela foi realizada com base na consciência dos indivíduos que fazem parte dele. Eles podem decidir se unir e organizar para a libertação ou para a reprodução (VIANA, 2016). Esse processo é possível pelas bases sociais da atual sociedade, marcada pelo predomínio das ideias dominantes (sob as mais variadas formas, desde as conservadoras até as progressistas, incluindo as falsamente revolucionárias ou emancipadoras). Nesse contexto, é possível defender ideias tais como a da auto-organização, da liberdade, etc., mas de forma mistificada, como sendo finalidades em si mesmas. A mistificação é por se realizar em um pequeno grupo (determinado pelo conjunto das relações sociais e com pequena margem de decisão além de suas questões internas) e não no conjunto da sociedade. A liberdade só pode existir efetivamente se for coletiva, generalizada em toda a sociedade. Senão será apenas uma farsa, uma ilusão. Isso contribui com a manutenção da não-liberdade. A consciência da não-liberdade é condição para a luta e para a conquista da liberdade.

O processo revolucionário significa, portanto, uma revolução cultural, que pode emergir marginalmente na sociedade capitalista, mas que deve ir se desenvolvendo e ampliando, realizando sua fusão com o proletariado, a classe revolucionária. Desde as formas mais simples até as mais complexas, a consciência revolucionária deve emergir e se generalizar. No plano das ideias, elas podem avançar e se desenvolver, mas sob limites que são os impostos pelas relações sociais da sociedade capitalista, expresso no aparato estatal, empresas capitalistas (incluindo as de comunicação, educação, etc.), instituições, hegemonia burguesa, etc. Esses limites, no entanto, não devem servir de pretexto para cair, seja no pessimismo, seja no imobilismo, ou, ainda, no espontaneísmo, esperando que um dia caia do céu a consciência revolucionária do proletariado. Essa consciência revolucionária existe embrionariamente e os militantes revolucionários (intelectuais, jovens, pequenos grupos, ou seja, o conjunto do bloco revolucionário) devem desenvolver e aprofundar a propaganda, a produção cultural (teórica, artística, etc.), a contribuição para a formação intelectual (pedagogia autogestionária), etc. Esse trabalho, que pode parecer insignificante no atual contexto, pode ser importante quando explodir as crises, a ascensão das lutas operárias que emerge a partir do constrangimento do aumento da exploração ou da penúria, a insatisfação da maioria da população, a violência e truculência do aparato estatal, etc. Uma vez emergindo esse processo, há uma base que permite uma expansão mais rápida e eficaz. A recepção das ideias revolucionárias ganha outra dimensão.

Por isso, recordar a crítica do idealismo em Marx é fundamental, para romper com o pseudomarxismo e com o materialismo vulgar, que beneficiam os interesses da classe burguesa, especialmente quando caem no pragmatismo, praticismo, determinismo, etc. O fetichismo das organizações autárquicas (auto-organização) é outro problema, pois essas nascem e morrem, mas é através da consciência que elas podem ser recordadas, podem ensinar, podem significar algo revolucionário. As ideias não morrem. Podem ser censuradas, esquecidas, marginalizadas, assim como podem ser divulgadas, recordadas, fortalecidas. Mas qual tipo de organização, o que deve a organização fazer, isso é algo que é definido pela consciência.

Por isso, aqueles que se desanimam diante da resistência em relação às ideias revolucionárias, apenas mostram não entender o marxismo. A partir da base de organizações autárquicas não emerge, imediata e automaticamente, ideias revolucionárias. Acreditar nisso seria inventar um determinismo organizacional, abstraindo que os seres humanos reais que estão organizados estão envolvidos por esta sociedade por todos os lados e é preciso não só apresentar “ideias organizacionais” (pois é isso que se faz, mesmo aqueles que falam da “impotência das ideias”), mas ideias revolucionárias. É preciso compreender que se trata de uma totalidade e que portanto não se pode jogar uma parte dela fora, as ideias, mesmo porque elas são fundamentais para a transformação social e radical das relações sociais. Para compreender isso, é fundamental entender a crítica ao idealismo realizada por Marx e não cair no materialismo vulgar.

 

Referências

 

KORSCH, Karl. Marxismo e Filosofia. Porto: Afrontamento, 1977.

 

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 3ª Edição, São Paulo: Ciências Humanas, 1982.

 

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis: Vozes, 1988.

 

MARX, Karl. As Lutas de Classes na França. São Paulo, Global, 1986.

 

MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2a edição, São Paulo: Martins Fontes, 1983.

 

MARX, Karl. O Capital. 3ª edição, Vol. 01, São Paulo: Nova Cultural, 1988.

 

MARX, Karl. O Dezoito Brumário e Cartas a Kugelmann. 5ª Edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

 

MARX, Karl. Teses Sobre Feuerbach. In: MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 3ª Edição, São Paulo: Ciências Humanas, 1982.

 

VIANA, Nildo. A Pesquisa em Representações Cotidianas. Lisboa: Chiado, 2015.

 

VIANA, Nildo. Cérebro e Ideologia. Uma Crítica do Determinismo Cerebral. Jundiaí: Paco Editorial, 2010.

 

VIANA, Nildo. Espontaneidade e Liberdade. Revista Posição. Ano 02, vol. 02, num. 06, jan./jun. 2015. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/rpo/article/view/2viana6/222 Acessado em: 06/06/2015.

 

VIANA, Nildo. Organizações: Reprodução ou Transformação Social. Revista Espaço Livre. Vol. 11, num. 21, 2016. Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/rel/article/view/440/391 acessado em: 31/12/2016.

 



* Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB).

[1] Na concepção de alguns behavioristas e outros materialistas vulgares, as ideias seriam determinadas por processos biológicos, tal como nas ideologias do determinismo cerebral (VIANA, 2010) e, por isso, não poderiam determinar as ações individuais ou sociais.

[2] As ideias podem ser diferenciadas também por sua complexidade (representações cotidianas e saber complexo, por exemplo), mas nosso foco aqui não é apenas a crítica marxista do idealismo e por isso essas outras diferenciações não serão abordadas.

[3] Korsch (1977) enfatizou isso ao colocar que as ideias fazem parte da realidade e, portanto, também agem sobre ela.

[4] Para ocorrer isso, obviamente, é necessário a abolição das classes sociais e da divisão social do trabalho, bem como dos seus derivados, como o aparato estatal.

[5] Nem mesmo classe revolucionária, pois sem tais sentimentos e valores, bem como formas de consciência correspondentes, não haveria solidariedade e união, algo que impossibilita a transformação do proletariado de classe determinada pelo capital em classe autodeterminada.

[6] No sentido de “somente delas mesmas”, pois as ideias, as formas de consciência, surgem a partir de ideias anteriores, reinterpretadas, adaptadas, ao mundo presente, de acordo com os interesses de classe de quem realiza tal processo. Nesse sentido, é preciso ser coerente com o materialismo histórico: as formas de consciência (ou as “ideias”) são algo real, logo, concreto, síntese de múltiplas determinações. Uma de suas determinações são as ideias anteriores ao lado dos interesses (pessoais e de classe, que se misturam, mas nem sempre são coerentes nos indivíduos concretos) derivados da divisão social do trabalho, bem como sentimentos, valores, relações sociais, etc. Da perspectiva do indivíduo, a explicação de quais ideias terá maior impacto em sua vida remente justamente ao seu processo histórico de vida, especialmente sua classe social. Da perspectiva das ideias socialmente mais importantes, remete às ideias dominantes, produto dos interesses da classe dominante e seus representantes ideológicos, e às ideias revolucionárias, produto dos interesses do proletariado e seus representantes intelectuais, bem como as demais ideias vinculadas às dominantes, tal como as concepções ecléticas das demais classes sociais.


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